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  • Foto do escritorParóquia Santo Antônio

O rosto do serviço: reflexões a partir do lava-pés

Seminarista Luciano Dalmolin





A primeira vez que tive contato com a pintura do frade alemão Sieger Köder retratando o lava pés se deu durante a experiência missionária realizada na diocese de Floresta, em Pernambuco, no mês janeiro deste ano. A pintura foi utilizada durante uma das catequeses que o bispo de tal diocese proferiu aos participantes da missão, para fundamentar a ideia de serviço a partir do gesto do lava pés de Jesus na Última Ceia. A imagem despertou-me a atenção, sobretudo pelo fato de não ter visto representação similar em lugar algum. Sua originalidade está, justamente, na representação do rosto de Jesus, refletido na água suja da bacia. É como se o rosto de Cristo estivesse anônimo e só demonstrável a partir do reflexo na água. Diria que esta imagem é de uma profundidade estupenda, por isso, vale uma reflexão mais minuciosa.

A temática do rosto sempre foi utilizada por diferentes correntes literárias. O filósofo judeu, Emmanuel Levinas (1906-1995), desenvolve o que se pode chamar de antropologia do rosto. Como expoente da filosofia contemporânea, erradicada na ideia de intersubjetividade como paradigma principal, Levinas procura refletir o “eu” a partir da relação com o “outro”. Nesta perspectiva de alteridade, o rosto humano é entendido como eixo hermenêutico, expressão do infinito, porque guarda os traços do Criador, para além dos simples aspectos físicos. Dessa forma, ao contemplar o rosto de outro ser humano, contemplamos os traços do infinito e do divino, no que se apresenta como finito e humano. O ser humano sempre teve a curiosidade de contemplar o rosto de Deus. Como reza o salmista, “Senhor, é vosso rosto que eu procuro” (Sl 27,8). No livro do Êxodo, quando Deus dialoga com Moisés, sugere que este não olhe para seu rosto durante sua passagem, porque não poderia ver o rosto divino e continuar vivo (Ex 33,34). A dinâmica revelada por Jesus ganha uma perspectiva diferente. Dizemos que Jesus Cristo nos veio revelar quem é Deus. “Ele é a imagem do Deus invisível”, proclama São Paulo aos Colossenses (1,15), isto é, Aquele que veio revelar o rosto de Deus aos seres humanos que sempre o ansiaram conhecer. O Papa Francisco nos recorda que Jesus é o rosto misericordioso do Pai e vem nos revelar um Deus que está sempre pronto ao perdão.

Sendo assim, o que enxergamos ao contemplar aquele rosto refletido na bacia de água suja é o rosto do próprio Deus feito carne. Ao inclinar-se para lavar os pés é como que seu rosto fica-se anônimo, como que o “eu divino” se anulasse e se demostra-se na arte da servir, de dar a vida. A cena do lava pés narrada pelo evangelista João é rica em detalhes. Mas antes, é indispensável recordar um dado fundamental da fé cristã. O desígnio amoroso de Deus expressou-se, de forma plena, quando o Filho, que “existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo e tomou a condição de escravo, tornou-se igual aos homens” (Cf. Fl 2, 6-7). São Paulo nos recorda que Cristo se abaixou, esvaziando-se de si para se fazer semelhante ao ser humano. Na Última Ceia, Jesus não só se abaixa, mas despoja-se de seu manto e veste-se com o avental, passando a exercer o trabalho que era designado aos escravos: lavar os pés. Diante disso, a repulsa de Pedro: “Senhor, tu me lavas os pés?” (Jo 13,6). Na tradição da época, oferecer água para lavar os pés da poeira do caminho era gesto de cortesia e acolhida, geralmente exercida pelos servos. Assim, em Jesus não só vemos o Deus que se abaixa e se esvazia, mas que assume o papel de escravo. Por meio do gesto do lava pés, revela a mais alta e profunda imagem do serviço. Toda a vida de Jesus foi expressão do lava pés. Jesus fez dela uma constante prática de serviço e doação, preferencialmente aos pobres e abandonados, desde a encarnação até o ápice de seu amor total na cruz. No lava pés, Jesus nos ensina que a força e o poder de Deus não estão na dominação e na grandeza, mas no simples gesto de servir. É o que entendemos em termos eclesiais: poder é serviço. Porém, o gesto do lava pés não pode ser dissociado de outro ponto importante daquela Ceia: o mandamento do amor. “Amai-vos como vos amei” (Jo 13,34) e depois “ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida” (Jo 15,13). O amor é aqui entendido como a síntese perfeita de toda a nossa fé cristã.

Depois do gesto de serviço, Jesus procede com o ensinamento “também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14). Esta é a missão de todo cristão. Lavar os pés, fazer da vida uma doação constante, para amar e servir. “A verdadeira grandeza consiste em colocar-se a serviço dos irmãos com amor; o serviço é a manifestação prática do amor. E o amor busca sempre o último lugar, precisamente porque esse é o lugar mais universal; é o lugar que mais nos humaniza, o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade” (PALAORO). Sendo assim, toda a expressão de serviço, doação, cuidado da vida (CF 2020) é expressão do lava pés daquela Última Ceia.

Como estávamos carentes de tais gestos! Papa Francisco, assim como tantos outros, nos recordam que, antes do contexto pandemia, nosso mundo já estava doente, em vários sentidos, porque, justamente, esqueceu de olhar a vida como dom maior. O grito do lucro, do poder, da exploração abafam as vozes que sempre clamaram por solidariedade, compaixão e gratuidade. Como o contexto de pandemia nos tem revelado que o que salva são os gestos de solidariedade, cuidado, amor e serviço! Vemos no mundo inteiro o lava pés de Jesus acontecendo nos hospitais, onde os profissionais da saúde, médicos, enfermeiros (as) não medem esforços para cuidar dos contaminados, a ponto de colocarem a própria vida em risco. Doam de si mesmos, não por um simples profissionalismo, mas porque acreditam no amor e na defesa da vida. Vemos o lava pés acontecendo nas casas de caridade e de assistência social que acolhem os que estão necessitados de alimentos, roupas, kits de higiene, porque devido a impossibilidade do trabalho, não conseguem renda.


Nas famílias que estão cuidando de seus idosos, nos pais que estão tendo tempo para conviver com os filhos, naqueles e naquelas que partilham um pouco do que tem com quem está necessitado, no trabalho daqueles que precisam manter os serviços essências da sociedade como agricultores, caminhoneiros, jornalistas, policiais, farmacêuticos, vendedores de mercados etc. Todos estes estão doando a própria vida, para que todos possam ter as condições necessárias para enfrentar este tempo de pandemia.

Há tantos rostos anônimos nos dias de hoje, que na simplicidade, no silêncio, fazem resplandecer a força do amor. Os rostos daqueles que se colocam a serviço podem ser anônimos, mas a água na bacia os revelam como rostos do serviço e da compaixão. O rosto refletido na bacia com água expressa que nossa verdadeira beleza, nosso verdadeiro eu está no doar-se, no servir, no dar a vida por amor. Por que, em última instância, o sentido do viver humano está na entrega daquilo que de mais precioso temos: vida, por amor a Deus e aos irmãos. Como nos recordou o Papa Francisco na missa de Ramos do último domingo, “a vida mede-se pelo amor”. “Também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14). É a missão, é o sentido último da vida. Cuidar, doar, servir e assim refletir no mundo o rosto misericordioso de Deus.

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